segunda-feira, 28 de julho de 2008

Da primeira vez que comi

Fiquei me olhando por muito tempo no espelho outro dia. Devo ter pedido umas duas horas sentada de frente para o espelho do armário. Logo atras dele, podia ver as fotos dela. Um mural cheio de fotos dela e dos amigos que agora são meus. Tem uma foto, bem no meio do mural, dela. Acho que é a foto mais bonita que ela podia ter escolhido. Ela usava uma camiseta preta escrita UFRJ, a faculdade que vou estudar a partir de agosto (Letras. Literatura. Mais uma coisa que temos em comum, o fascínio pelas palavras, pela leitura...Apesar de que esse lance nunca foi a minha praia, e, quer saber? Nem a dela...). Olhei aquela foto, olhei pra mim no espelho...Foto-espelho-foto-espelho... Minha mãe, então, me chamou pra tomar mais uma de suas sopas.
Nossa, aquelas sopas tão gostosas e tão cansativas...Não me satisfazem, nao me deixam bem, enfim...Tudo que elas conseguem provocar é aquela sensação de engano no estomago que...começou a doer agora!

Já sabia das crises de dor de estomago dela, gastrite crônica. Ouvi minha mãe falando, entre Coca-Colas, Buscopans, Atroverans e Mylantas que era falta de comida de verdade. Entre tantos remédios e dores, acabei dormindo.
Acabei sonhando com o dia em que aquela foto do mural foi tirada. Era um dia de festa, aniversários de um dos amigos dela. Tinha um bolo e alguns quitutinhos pra beliscar. Neste dia, foram tiradas muitas fotos. Neste dia, como nos outros, ela comeu os quitutinhos, o pedaço de bolo, talvez um sanduíche lá pela faculdade pra encarar uma tarde de biblioteca...
Acordei com fome e mais dor no dia seguinte. Como todas as noites, sonhei com pães e bolos, pedaços suculentos de carne vermelha, frango, camarão. Levantei da cama com a sensação de que tinha um boi no meu estômago. A dor me acompanhou durante aquele e o dia seguinte. Na mesa da sala, pães, almoços robustos, cachorros-quentes no jantar. Não era só a dor...
Fome!
Num ato de revolta, depois de passar mais alguns momentos (não sei ao certo quanto tempo fiquei) na frente do espelho do armário, e depois de olhar mais diversas vezes para a foto dela no mural, arranquei tudo aquilo que me impedia de comer. E dessa vez, ia colocar uma colher na boca.

Foi nesse momento que tive uma relação muito íntima com um órgão que eu ainda não conhecia: a minha língua. Depois da primeira linguada para o meu reflexo no espelho, passou a ser uma grande diversão ver até quanto minha língua podia se esticar sem eu sentir a nova articulação. Esticaesticaestica e puxa! E eu pude ver que a minha língua é rosa, assim como todas as línguas de todas as pessoas. E eu passei a ver o quanto eu podia abriri a boca sem sentir a nova articulação. Abria e fechava, primeiro muito timidamente e depois super a vontade. Posso colocar uma colher, que seja, dentro da minha boca.
Foi hoje que paguei um almoço para o Michel no shopping. Escolhi o restaurante, o que eu a comer. Olhei pra colher, estranhei...nem sabia como se usava. Aquele pedaço de plástico me chamou atenção por um tempo, quando meus olhos fitaram outra cena: a do Michel usando a mesma colher para mergulhar no strogonoff e trazer cheia de creme de leite e pedaços de carne até a boca. Tentei fazer o mesmo. Enfiei a colher naquele batatão enorme e ela veio cheia de creme de queijo e alguns pedaços de batata. Nossa, como eu vou socar tudo isso dentro da boca? Nas mesas que nos cercavam, todos faziam o mesmo movimento (alguns seguravam aqueles sanduíches gigantes do McDonalds com guardanapos e enfiavam quase todos boca adentro, e senti minha boca querendo fazer o mesmo movimento): colher no prato ou na batata, colher cheia de comida, colher na boca, colher limpa.
Tentei imitá-los. Primeira tentativa: metade do queijo caiu de volta na batata. Segunda tentativa: metade do pedaço da batata caiu de volta na batata. Terceira tentativa: a outra metade que sobrara na colher caiu da minha boca, mas na bandeja.
Ah, que desespero! Pessoas poderão me apontar na rua! Uma mulher de 23 anos que não sabe comer! Mas peraí...Eu realmente não sabia como comer de colher! Sei manusear um canudo como ninguém numa sopa de legumes, mas uma colher? Ah, por favor, que negócio mais esquisito!
Foi de raiva que soquei o pedaço de batata na boca. E outro. Mais outro. E outro. Huuuum. Quero mais. Nossa, isso é mto louco. Mais outro. Barriguinha cheia.
Pude sentir o estomago sorrindo. É engraçado, mas ele tem uma vida além da minha. Ele reclama de fome e de dor. Aliás, meu estomago é um ranzinza de primeira!
Dali para outros pratos, outros quitutinhos, não vai demorar tanto. Nacser de novo é complicado. Ataptar a uma vida que existia quando você ainda não era você é muito complicado. Acho que só eu sei que eu não sou ela. Não, não sou. Mas isso é segredo.
(Ah, a dor? Passou! Nada que um pouco de comida propiamente dita, não acham? Agora tenho que voltar ao espelho, estou descobrindo coisas interessantíssimas sobre mim)

3 comentários:

  1. hehe, já vi que matou quem te matava...rs. Olhe, pegue leve, hein? rs
    Beijão!

    ResponderExcluir
  2. Este comentário foi removido pelo autor.

    ResponderExcluir
  3. Aaaaaah, gostei!
    Pena que não deu pra me despedir da velha Pat. Lembro da última vez que a vi, ela estava comemorando o fato de ter comido um milho verde sem culpa... engraçado como nos alegramos com coisas tão simples. Línguas, colheres, milhos, "singelices" capazes de salvar nosso dia. Algumas também tem mania de escrever em blogs e adoram quando recebem visitas inesperadas. Isso costuma acontecer comigo, e com vc?
    Pode deixar, eu voltarei sempre.
    Um grande beijo!

    ResponderExcluir

depoimento: