segunda-feira, 14 de julho de 2008

Do espelho

Hoje acordei cedo, ainda com cara de sono. Minha miopia fica mais evidente assim que acordo. Cadê o celular, cadê o botão do relógio, cadê o chão...É justamente nessa hora que eu me olhava no espelho e me assustava.

Lembro-me da última vez que ela se olhou no espelho. Ela ainda estava no hospital, à espera dos médicos e da anestesia. Ela não parava de falar, já que a pilha estava cheia de nervos. Circulava pelo quarto, pela varanda, sentou-se no sofá, na cama, na cadeira, tirou tudo do lugar, foi ao banheiro. Ao se olhar, sabia que seria a última vez. Ficou mais tensa e calou-se. Olhou-se profundamente dentro dos próprios olhos refletidos e percebeu algumas coisas. Seus olhos, algumas vezes, ficavam azuis como os do avô. Os olhos do avô eram azuis tão profundos e tão escuros que todos tinham dúvidas sobre a cor de seus olhos: pretos ou azuis? Naquele momento, seus olhos estavam azuis muito escuros. Ali, ela se perguntou qual era a cor de seus olhos...Sabia que aquilo realmente não importava. Ela morreria em algumas horas e estava um tanto quanto tensa e feliz. Uma vida que começa, ou que se encerra.

Muito fez naqueles 23 anos de vida. Amou muito, sentiu muito, sofreu muito, batalhou muito. Tudo que colocava a mão fazia questão de trabalhar de verdade. Foi caixa de loja por 2 anos. Tentou vestibular por 4 anos. Amou e sofreu por quase 4 anos. Perdeu e ganhou amigos. Viu parentes indo embora, não da forma que ela ia naquele dia. Suspirou. Ela a última vez que se via no espelho.

Hoje, ao tentar fazer com que meus pés encontrassem o caminho para o banheiro, eis que me olho no espelho. Os mesmos olhos que, algumas vezes, podem ficar azuis. O mesmo nariz redondo e pequeno, que difere de todos da familia. Os mesmos cabelos compridos. O susto de se ver completamente diferente dela me marca todas as manhãs. Tenho a responsabilidade de tomar a vida dela, a família dela, os amigos dela, a faculdade dela, o namorado dela, o blog dela, a casa dela, os sonhos dela e transformá-los. Nós duas sempre soubemos que, para ela, o marco final de sua jornada seria traçado naquele hospital. Para mim, o início da minha jornada seria traçado assim que eu saísse do hospital. Duas pessoas iguais, num rosto modificado, numa vida prestes a mudar. Atitudes repensadas, erros corrigidos, aprendizados.

A humana, que nasceu para cometer erros, não cometerá os mesmos erros. Sou humana, diferente dela, mas agora (re)nasceu para consertar os erros.

Um comentário:

  1. Ser uma pessoa nova e ao mesmo tempo manter as mesmas características é um desafio e tanto. Algumas pessoas simplesmente não conseguem fazê-lo e pulam fora, resolvem ser a mesma pessoa velha de vez. Você simplesmente não terá essa opção, mas se tivesse, duvido que a seguiria. Como pessoa forte, tentaria ser o mais diferente possível, quase irreconhecível, enigmática.
    Assim, só por prazer mesmo...

    Te adoro!!!!

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